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Anderson Riedel/PR
Cidade

STF ou Forças Armadas? Quem é, de fato, o guardião da Constituição Federal

Papel do Supremo e dos militares é bem claro na Constituição Federal, mas teses golpistas propagadas na internet desinformam e causam confusão.

Gazeta do Povo
por  Gazeta do Povo
22/06/2020 20:12 – atualizado há 3 anos
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Em artigo recente publicado no site do Clube Militar, o major-brigadeiro da reserva Jaime Rodrigues Sanchez define os militares, da ativa e da reserva, como "legítimos guardiões da Constituição Federal" e diz que eles estão "indignados com as recorrentes atitudes lesivas aos interesses do País." 

A afirmação ocorre num momento delicado das relações entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF), que buscam uma pacificação após desentendimentos públicos. Instigados pela postura de enfrentamento do presidente Jair Bolsonaro, ministros da ala militar têm emitido opiniões duras contra pareceres do STF que afetam o governo e até contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que pode julgar a cassação da chapa que elegeu Bolsonaro em 2018.

Esse antagonismo entre militares e juízes traz de volta uma antiga rivalidade sobre quem é o verdadeiro guardião da Constituição, responsável por fazer valer os direitos e deveres previstos na carta. O artigo 102 do texto constitucional de 1988 é claro ao dizer que "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição". O órgão máximo do pode Judiciário no país é, portanto, a instância adequada para fiscalizar, orientar e dirimir dúvidas sobre o cumprimento dos 250 artigos da carta magna brasileira. É uma prerrogativa do STF, ainda, atuar como mediador de conflitos entre a União e as unidades da federação.

Muitos militares que defendem Bolsonaro, porém, têm contestado o papel da Suprema Corte e falam abertamente em hipóteses como a de uma "intervenção militar constitucional" e a da aplicação do artigo 142 da Constituição, que supostamente daria ao presidente poderes para acionar as Forças Armadas contra o Congresso Nacional e o STF. As duas ideias são rechaçadas por membros do meio jurídico, que criticam ainda o que consideram uma escalada de autoritarismo por parte de Bolsonaro e seus aliados.

Constituição confere aos militares o papel de "poder moderador"?

No dia 21 de maio, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) disse na tribuna da Câmara que a Constituição previa para as Forças Armadas a função de "poder moderador" entre os poderes. A parlamentar declarou que cidadãos "não veem outra solução" que não pedir ao presidente Jair Bolsonaro o emprego do artigo 142"da Constituição.

O artigo em questão aborda as atribuições das Forças Armadas que, entre outros, destina-se "à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais". O trecho é costumeiramente citado por bolsonaristas por causa de duas frases de sua redação: uma, quando descreve que as Forças estão "sob a autoridade suprema do Presidente da República" e a outra, é a que elas podem ser acionadas para a garantia "da lei e da ordem". Segundo esta argumentação, Bolsonaro poderia recorrer aos militares para "resolver" uma suposta sabotagem que os outros poderes estariam fazendo contra seu governo.

Apoiador do presidente, o pastor Silas Malafaia pediu a intervenção das Forças Armadas contra o ministro Alexandre de Moraes: "Artigo 142 da CF contra esse absurdo", escreveu na terça-feira (16). Nas redes sociais, é comum que partidários de Bolsonaro façam críticas a ele e à cúpula das Forças por uma suposta "omissão", já que não houve um "acionamento" dos militares contra os representantes dos outros poderes.

O major-brigadeiro Rodrigues Sanchez, que defende uma atuação direta das Forças Armadas na vida política do país, escreveu recentemente que "o estado de coisas está se encaminhando para uma situação onde só as FFAA poderão mais uma vez salvar o país" — a outra ocasião que o Brasil foi "salvo" pelas Forças Armadas, segundo ele, foi na execução do golpe de 1964, que implantou a ditadura que vigorou até 1985. E ainda no ano passado, o militar cunhou uma metáfora que passaria a empregar em outras situações: a de que Bolsonaro estaria sendo ameaçado por uma "sucuri de duas cabeças", que seriam o Congresso Nacional e o STF.

Meio jurídico rechaça "intervenção constitucional" e "aplicação" do artigo 142

Quando a deputada Bia Kicis discursou sobre o artigo 142, ela citou um posicionamento do jurista Ives Gandra Martins. A fala do advogado foi também mencionada em um vídeo que o próprio presidente Bolsonaro compartilhou em suas redes sociais.

A defesa que Gandra Martins fez das Forças Armadas como um "poder moderador" não encontra, entretanto, muito eco na comunidade jurídica. Ao contrário: nas últimas semanas, diferentes juristas e entidades publicaram manifestações em rejeição à hipótese.

Uma delas é do ministro Luiz Fux, futuro presidente do STF. O magistrado assinou uma liminar no dia 12 de junho em que definiu as Forças Armadas como uma instituição de Estado, não de governo, “indiferentes às disputas que normalmente se desenvolvem no processo político”. No texto, Fux apontou ainda que a "autoridade suprema" que a Constituição prevê que o presidente da República tem sobre as Forças Armadas não garante ao chefe do Executivo a possibilidade de utilizá-las para intervir sobre outros poderes.

No início do mês, a Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados produziu um parecer de interpretação do artigo 142 em que também descartou que o texto sugira a possibilidade de uma intervenção militar com respaldo legal. "O art. 142 da Constituição não autoriza a realização de uma 'intervenção militar constitucional', ainda que de caráter pontual", diz um trecho do parecer.

Em outro, é citado: "A 'autoridade suprema' do Presidente da República em relação às Forças Armadas significa simplesmente que a direção do chefe do Poder Executivo não pode ser contrastada por qualquer autoridade militar, o que mais uma vez revela a prevalência do poder civil". "Nenhum dispositivo constitucional e legal faz qualquer referência à suposta atribuição das Forças Armadas para o arbitramento de conflitos entre os poderes", destaca a peça.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fez, também em junho, um documento com o mesmo teor. No texto, a instituição cita que o "poder moderador" existiu no Brasil apenas durante o Império (extinto em 1889) e que a Constituição "não abre nenhum espaço para se alçar as Forças Armadas de cumpridoras da lei à condição de intérpretes e fiadoras da própria legalidade".

O parecer faz ainda uma menção elogiosa ao trabalho dos militares: "Interpretar as funções e as competências das Forças Armadas dentro dos marcos democráticos e do império da lei é postura que somente valoriza a importante missão constitucional que desempenham. E é postura compartilhada pela expressiva maioria dos integrantes das três Forças, que mantêm inabalável compromisso com a legalidade e rechaçam os discursos de intervenção militar".

No Twitter, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso arrematou a questão, alegando que o artigo 142 nada tem a ver com "intervenção militar". E ele falou com propriedade e conhecimento de causa. "O art 142 da Constituição é de redação minha e do sen Richa. Qualquer dos 3 poderes pode requerer as FFAA na defesa da Constituição e da ordem. Nada a ver com tutela, moderação ou intervenção militar. Os 3 poderes são independentes e harmônicos, regulados pela Constituição. E só", escreveu, fazendo menção ao ex-senador e ex-governador do Paraná José Richa.

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