Depois de se dividir entre esquerda e direita, nos últimos dias um novo fosso passou a colocar os brasileiros em lados opostos: os que defendem o maior isolamento social possível durante a expansão da pandemia de coronavírus e quem pede o confinamento exclusivo de grupos de risco para permitir a reabertura de empresas e evitar um tombo ainda maior da economia.
O problema é que a politização do combate ao coronavírus, reforçada após um apelo do presidente Jair Bolsonaro para que o país volte a funcionar, e a falta de ação coordenada entre municípios, Estados e União para definir uma estratégia comum já ameaça reduzir a eficácia do esforço nacional para combater a covid-19.
Epidemiologistas e infectologistas alertam que a decisão sobre o melhor caminho a seguir precisa ser técnica e não política ou exclusivamente econômica, levando em conta fatores como a curva de novos casos e o perfil populacional dos brasileiros.
Até o momento, o país adotou um caminho mais próximo ao que se chama de "isolamento horizontal" a fim de frear a disseminação do vírus e prevenir um colapso do sistema de saúde. Não há um confinamento total, mas vários Estados e municípios determinaram suspensão de comércios e serviços não essenciais. Ou seja, todos são aconselhados a ficar em casa, como preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ao longo da última semana, Bolsonaro tomou a frente para defender um outro modelo, chamado "vertical", que permite a reabertura de escolas, universidades e negócios ao prever que apenas idosos e pessoas com doenças pré-existentes se isolem. Entidades empresariais já lançaram manifestos pedindo a volta à normalidade, e carreatas estão sendo realizadas em diversas cidades para forçar prefeitos e governadores a levantar a quarentena.
Especialistas afirmam que retorno à rotina sem planejamento e reforço na aplicação de testes à população pode causar dano. O primeiro dado a ser considerado é que o coronavírus não se compara a um resfriado. O Imperial College de Londres, que vem realizando estudos usados como subsídio para a definição de políticas contra a covid-19 em diversos países, terminou na quinta-feira (26) um trabalho que estima o impacto de diferentes medidas de contenção sobre a pandemia.
Uma das conclusões é que, se absolutamente nada fosse feito, até 40 milhões de pessoas morreriam. É equivalente ao impacto da gripe espanhola entre 1918-1919, uma das epidemias mais mortíferas da História. Medidas intermediárias, que reduzam os contatos sociais dos idosos com outras pessoas em 60%, e do restante da população em 40%, cortariam a conta de mortos pela metade. Uma receita mais incisiva, com ampla testagem e isolamento de portadores do vírus associada a um distanciamento social mais severo, pode salvar 95% das vidas — desde que implementada quando a epidemia ainda está acelerando. É o cenário em que se encontra o Brasil, com a curva de novos casos em elevação.
— É irresponsável flexibilizar as restrições agora porque ainda estamos no início da curva (de novos casos), e ainda temos muito poucas pessoas já imunizadas na população. Com o passar do tempo, mais pessoas vão pegar a doença, mesmo que não apresentem sintomas, e se imunizam. O problema é que há muita desarticulação entre os níveis de governos. O ideal seria contar com uma política centralizada — argumenta o presidente da seção gaúcha da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Alexandre Schwarzbold.
O Imperial College calculou que 44 mil brasileiros podem morrer em razão da covid-19 mesmo com medidas mais restritivas, mas essa cifra alcançaria 529 mil se fosse adotada apenas a reclusão vertical de idosos.
Isso não quer dizer que a quarentena horizontal seja uma solução simples: há um preço epidemiológico e outro econômico a pagar. Do ponto de vista da saúde, segundo o infectologista do Hospital Conceição André Luiz Machado da Silva, se muitas pessoas ficarem isoladas por muito tempo, a imunidade social seguirá baixa. Assim, quando finalmente a vida voltar ao normal, o vírus pode provocar uma segunda onda de infecções. Em outro estudo, o Imperial College também previu esse possível efeito: o levantamento das restrições em setembro poderia levar a um novo pico de infecções entre novembro e dezembro pela falta de imunidade entre a população.
O fardo econômico de ficar em casa também é pesado. Uma publicação do Centro de Pesquisa de Política Econômica (rede de 1,5 mil pesquisadores com sede na Inglaterra) avalia que dois meses de lockdown (bloqueio) econômico poderiam resultar em uma queda média de 6,5% no Produto Interno Bruto (PIB). A grande recessão de 2008, por exemplo, custou cerca de 4,5% do PIB americano.
— O isolamento generalizado, mantido por muito tempo, tem um impacto social significativo — reconhece Silva.
Como a pandemia é recente e depende de muitos fatores locais, os exemplos de outros países servem apenas como referência. A Itália trocou o confinamento horizontal pelo vertical e o número de mortes, que era de 17 em fevereiro, saltou para mais de 9,1 mil após a mudança. Os Países Baixos ainda evitam ações drásticas e apostam na imunização social. Mas, como já morreram 356 pessoas até sexta (27), e o vírus foi encontrado até no esgoto de Amsterdam, o governo admite rever sua posição caso necessário.
O infectologista do Conceição acredita que poderia ser buscada uma abertura gradual no Brasil, mantendo a proibição de eventos públicos e o fechamento de espaços como cinemas, teatros e evitando aglomerações:
— Poderíamos começar com empresas de setores em que os funcionários já estão mais habituados a seguir protocolos de higienização, por exemplo.
Outra possibilidade seria adotar uma estratégia "liga e desliga", ou seja, afrouxar ou ampliar o confinamento com base em algum tipo de gatilho como o número de internações por semana. Mas seria fundamental, segundo Silva, seguir uma medida adotada em outros países que não impuseram regras tão rígidas de quarentena, como a Coreia: testar uma amostra significativa da população para avaliar o nível de contaminação e prevenir que eventuais doentes sem sintomas entrem em contato com pessoas suscetíveis.
Schwarzbold diz que o ideal seria testar de 10% a 20% das pessoas para verificar quando haverá uma imunidade social mínima antes de flexibilizar o distanciamento social. O Ministério da Saúde anunciou a compra de 22,9 milhões de testes, e um grupo de bancos prometeu doar outros 5 milhões. Outro fator a ser considerado, conforme o dirigente da SBI, é o clima. Ele alerta que, no próximo mês, a temperatura — com padrão semelhante a algumas regiões da Europa no inverno — deve entrar em declínio no Estado, o que favorece infecções.
— Quando tivermos uma testagem mais maciça, ficaria mais seguro diminuir as restrições — sustenta Schwarzbold.
O que prevê
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Onde foi utilizado
O que prevê
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Isolamento intermitente
O que prevê
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Onde foi utilizado
A estratégia de fazer um isolamento "cirúrgico" é boa na teoria, mas enfrenta desafios práticos ao prever o isolamento de idosos e pessoas com doenças preexistentes. Mesmo que o Brasil tenha um percentual de pessoas mais velhas inferior ao da Itália, que registra alto número de mortes por covid-19, as condições de vida peculiares do Brasil elevam o risco de tentar preservar exclusivamente essa faixa etária. Na país europeu, os velhos representam mais de um quinto da população. No Brasil, são cerca de 16%, mas costumam dividir a casa com outras pessoas.
Um dado do censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que 9 milhões de pessoas já viviam na mesma casa que netos ou bisnetos. Outro dado do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aponta que dois terços dos idosos moram com alguma outra pessoa que não é seu cônjuge (familiar ou não). Se um desses acompanhantes retoma a rotina e se contamina, o risco de passar o vírus ao idoso é muito grande.
— Principalmente nas classes sociais mais baixas, onde a doença aparentemente ainda não chegou com tanta força, é muito comum idosos morarem com outras pessoas. Nesse caso, é muito difícil evitar a transmissão — opina o epidemiologista e professor da UFRGS Jair Ferreira.
Outro entrave são as pessoas com as chamadas comorbidades (outras doenças que podem agravar o quadro provocado pelo coronavírus). Um levantamento realizado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da UFMG, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Associação Brasileira de Educação e Tecnologia revela que nada menos do que 45% dos brasileiros com mais de 18 anos têm alguma doença crônica. Nem todas são fatores de risco para a covid-19, como problemas de coluna, mas a maioria é, como hipertensão, insuficiência renal, diabetes, câncer e complicações cardiovasculares.