Muito antes da febre dos super-heróis, um outro personagem de capas fantasiosas e super poderes de vidente fazia a cabeça de nossos vizinhos hermanos pela América Latina. Walter Mercado, mais conhecido no Brasil pelo bordão "ligue djá" e por práticas duvidosas de telemarketing, é uma lenda da televisão latina e, mais recentemente, foi alçado à cultura digital dos memes.
Antes de morrer no final de 2019, aos 87 anos, o astrólogo andava sumido do mapa por quase uma década. Vivia recluso em San Juan (Porto Rico), longe do glamour e das roupas extravagantes que marcaram sua carreira, até ser encontrado por uma dupla de diretores americanos de ascendência latina.
Ao recebê-los em casa, Mercado caprichou no spray de cabelo, vestiu suas roupas mais brancas e tirou a poeira de seus óculos dourados.
— Para nós, ele era uma mistura de Oprah Winfrey e Mister Rogers, com o look do Liberace — disse à reportagem a diretora Cristina Costantini (de Science Fair), que codirigiu o documentário Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado (Mucho Mucho Amor, no original).
A novidade estreia na plataforma de streaming Netflix no dia 8 de julho, após passagem pelo Festival Sundance. O nome original do filme pega emprestado o bordão que Mercado usava para se despedir em seus programas de astrologia, aos quais a diretora assistia religiosamente todos os dias quando criança, ao lado da avó imigrante.
— Temos esse amor profundo por ele porque crescemos ao seu lado. Ele representa uma nostalgia da nossa infância — explica.
Para quem conhece apenas seus comerciais bizarros na TV brasileira, marcados pelo inesquecível "ligue djá", é curioso embarcar em sua jornada mística. Somos apresentados à sua personalidade delicada e um tanto ingênua, embora ele fosse também ambicioso.
No auge da fama, atingia diariamente 120 milhões de televisores por diversos países: ele surgia como um mensageiro sideral andrógino, versado em misticismos, astrologia e muita autoajuda.
— Ele pregava o amor, a esperança e a paz. É uma mensagem muito relevante para os dias de hoje. Ele era uma fonte de inspiração para muitos de nossos avôs. Todo dia ele repetia: "Você pode, sim. Amanhã será um dia melhor do que ontem" — lembra Costantini.
A cineasta filmou Mercado por dois anos ao lado do codiretor Kareem Tabsch ( de The Last Resort), que é também cofundador de um cinema independente em Miami. Ao conhecê-los pessoalmente, a primeira pergunta do vidente foi saber o signo dos dois (ambos são de Libra, o que aparentemente ajudou). Mercado também fez o mapa astral da dupla.
— Não somos grandes crentes em astrologia, mas ele acertou bem — disse.
Foi Tabsch quem fez o primeiro contato com a família de Mercado, ao saber de um leilão em Miami para vender o apartamento e alguns pertences do astrólogo, em 2017. O diretor chegou a comprar um crucifixo, mas não conseguiu nenhuma das capas bordadas, que custavam alguns milhares de dólares.
Os dois diretores conheciam por cima a fase do "ligue djá", quando Mercado lançou um serviço telefônico de atendimento pago no Brasil, no começo dos anos 1990. Chegou a ter meio milhão de assinantes e quatro mil atendentes. No documentário, Mercado se defende dizendo que não era golpe e que seus atendentes eram videntes e tinham sempre uma palavra de motivação.
— Ele só tinha coisas lindas para falar do Brasil. Não sei se ele sabia que as pessoas no Brasil achavam que ele podia ser um vigarista — contou Tabsch, rindo. —Nosso filme é um retrato amoroso, mas também queríamos mostrar suas complexidades. Ele foi levado a certos caminhos por pessoas gananciosas, mas, honestamente, ele também queria fazer dinheiro.
O sumiço da vida pública veio depois que Mercado assinou um contrato sem os devidos cuidados e perdeu os direitos de sua marca e de seu próprio nome para seu empresário de longa data, Bill Bakula. Os dois passaram seis anos brigando na Justiça, o que acelerou a debilitação da saúde do astrólogo.
Ainda que sem nenhuma presença online, Mercado foi catapultado à fama digital para as gerações de latinos mais jovens ao aparecer num post do ator Lin-Manuel Miranda, americano de origem porto-riquenha famoso por escrever o musical Hamilton. O documentário mostra o encontro dos dois, como parte da renascença cultural do ícone latino.
O que mostra o documentário
A vida mística de Mercado começou cedo. Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado resgata sua infância pobre nos campos de cana-de-açúcar de Porto Rico, quando o menino sonhador vira "Walter dos Milagres". Uma vizinha testemunha o garoto dar vida nova a um passarinho morto com um singelo sopro, e pessoas do bairro passam a fazer fila em sua casa para tocá-lo.
Na capital San Juan, ele estuda dança e atuação, dando início a sua carreira nas telenovelas. Em 1969, uma aparição num programa de TV muda seu destino para sempre: ele aparece fantasiado e maquiado para promover uma peça de teatro, mas engata um monólogo de 15 minutos sobre signos. Mercado hipnotiza a nação e congestiona as linhas telefônicas da emissora. Rapidamente, ganha um programa de TV, o primeiro do mundo totalmente dedicado à astrologia.
Os diretores não fogem da questão que paira no ar o tempo todo. Afinal, ele era gay? Numa entrevista a Marília Gabriela de 1998, a jornalista comenta que ele tem "uma aparência muito feminina".
— Quando criança, quando atendia o telefone, me chamavam de senhora ou senhorita. Nunca me preocupei — ele responde, blasé.
Na dúvida, ao longo do filme, a pergunta volta: "Você é heterosexual?". Para evitar spoilers desnecessários, digamos apenas que a resposta é adequadamente um tanto mística.